domingo, 31 de maio de 2009

Toada Íntima


Espinhos rasgam-lhe
alma e mãos
até as pontas dos dedos
frios e molhados
em nome do amor
de pétalas negras
que mantém seu coração
preso e torturado
exalando o odor venéreo
da desilusão.

domingo, 24 de maio de 2009

Ayahuasca






Solta os cabelos
quero teu beijo:

doce incógnita

Estaremos ligados
ao cordão de prata

quero vê-la sorridente,
nua, leve e descalça
pelas margens do rio

até chegarmos ao campo
das árvores encantadas

entoaremos cânticos indígenas
através das aldeias

na tradição
milenar
das tribos abençoadas.

Pauperum spiriti est regnum coelorum




Os sinos tocam!
As badaladas, os trovões e a chuva, rasgam o entardecer.
A freira entra na igreja. Hábito molhado. Meio-riso baixo, abafado.
Ela senta no confessionário. O bispo irá ouvi-la, à antiga.
- O que houve minha filha?
A voz do prelado nunca lhe pareceu tão afeminada.
Numa tom de devoção afetada, ela diz satisfeita:
- Cometi pecados mundanos.
- Mas o pecado é humano, demasiadamente humano
- E agora, eu abomino profundamente a igreja.
- Minha filha, você é uma freira.
Ela continua:
- Dizem que somos o depósito de lixo da história e talvez seja mesmo verdade. Cometemos os mais terríveis e absurdos enganos.
- Não atentai contra a santa decência do clericalismo.
- Sempre demos as costas a ciência e ao que a filosofia ensina.
- Não insista minha menina!
- Sempre estivemos do lado mais conveniente e tapamos os ouvidos para os gritos dos inocentes.
- Os livros que tem lido estão lhe fazendo mal. Filha, o povo precisa dos nossos dogmas.
- As pessoas precisam permanecer dopadas? Limitadas aos cabrestos de concepções forjadas?
- Basta! Você está se perdendo em perigosas indagações.
Os trovões dançam assustadoramente nas nuvens, dando boas-vindas ao anoitecer. Ela chora e conclui a confissão:
- Quanto aos pecados mundanos: Eu tenho me encontrado com o padre recém ordenado... Decidimos abandonar a igreja para nos entregarmos ao amor.
O bispo estremece dentro do confessionário, levanta e grita com horror:
- HERESIA!
A ex-freira, também se ergue e diz triunfante:
- Não há abominação maior do que a pedofilia que você trancafia com suas vestes dentro da sacristia.
Então, ela arranca violentamente seu crucifixo do pescoço e joga-o aos pés do bispo. Rasga o hábito e saí correndo nua pelo corredor da igreja blasfemando entre risos.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Idealização



Corroído pelas
relações fraudulentas
no mesmo ímpeto
que fez Pigmaleão
esculpir a imagem
da mulher ideada
esboço cada um
dos seus traços
e imploro a Afrodite
para materializá-la

Mas nada acontece
e ela para sempre será
só uma página desenhada.

Soneto Cangaceiro



Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião do brilho morticínio
Comandou muitos cabras da peste, almas sem coração
E desmoralizou a macacada da volante policial no sertão
Esfregando nas regras da justiça as alpercatas do latrocínio

Foi do Padinho Ciço que veio a patente da guarda nacional
Pra enfrentar a Coluna Prestes no grande território cearense
Só resolveu fazer melhor uso da regalia de bom penitente
Pra amedrontar quem quer que fosse à ponta fria do punhal

Parecia dar ordem e lapada até na vegetação inclemente
Espalhou reinado escabroso na seca de sol incandescente
Acobertado pelos coiteiros que enchiam suas cartucheiras

O Capitão fazia explodir no céu a munição do rifle potente
Amava Maria que era mulher bonita e de sangue quente
Vaidoso para se deixar filmar e fotografar com sua cabroeira.

sábado, 9 de maio de 2009

Na mesa do bar




Na mesa do bar tinha uma dose de uísque
tinha uma dose de uísque na mesa do bar
tinha uma dose de uísque
Na mesa do bar tinha uma dose de uísque.

Sempre me lembrarei desse detalhe
nas retinas de minha vida tão solitária.
Sempre me lembrarei que na mesa do bar
tinha uma dose de uísque
tinha uma dose de uísque na mesa do bar
na mesa do bar tinha uma dose de uísque.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Cicatriz


O que se foi

nas ruínas do
teu olhar
de foto
em sépia,
cacos
das palavras
repetidas,
mágoas por
mentiras ditas

Restou intacto

no completo
imaterial
do afeto
imensurável
entregue
em mãos
e amargo
do último
beijo dado.